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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A CHAMINÉ




Noventa anos completava senhor Vito. Todos da família o prestigiava nesta data especial. Filhos e netos comemoravam a saúde, a disposição e mais um aniversário do querido avô, que pelo seu carisma e companheirismo conseguia manter a chama da união familiar sempre acesa. Preocupados em agradar e corresponder a tanta dedicação, todos os anos compravam diversos presentes, sempre acompanhados de uma bela macarronada regada  a vinho e muita música. Mas apesar de tantas comemorações era evidente que ele não era um homem completamente  feliz. Os netos indagavam se havia alguma coisa em especial que ele gostaria de ganhar. Sr. Vito levantou-se com certa dificuldade caminhou até a janela, apoiou as mãos no batente, e girando a cabeça lentamente  olhando para os netos, filhos e noras, respondeu:

- Sim, meu grande desejo é visitar a fábrica que trabalhei por mais de cinquenta anos. Este é meu último desejo,  e gostaria que vocês me levassem até lá. 

Surpresos, entreolharam-se. Preocupados em não contrariá-lo, tentaram argumentar, sabiam que não podiam realizar este pedido, pois desde que o avô perdeu sua querida Júlia, há mais de 20 anos, ficou desolado, e sua idade avançada não permitiria tal realização. Mas desde que ficou viúvo, Sr. Vito traçou um objetivo, iria rever o local onde dedicou toda sua vida.

Reunida, a família decidiu convencê-lo das dificuldades em atender o pedido. Disseram-lhe que sentiam muito, mas não seria possível, porque o lugar era distante, e depois por desmandos e má administração a fábrica fora à falência, e  o descaso  da justiça com a massa falida levaram-na a ruína e demolição por ação do tempo e de vândalos.    

Ao ouvir tamanha desgraça Sr. Vito respirando fundo, tirando uma lágrima do seu rosto que insistia em retornar, acabou concordando, mas não aceitava a ideia de um dia morrer sem antes voltar no local.

Mais um ano se passou e Senhor Vito  completa noventa e um anos. Novamente todos reunidos comemoravam o aniversário do patriarca da família. Mais uma vez senhor Vito não ganhou o presente que mais desejava. Noventa e dois, noventa e três, noventa e quatro, noventa e cinco, noventa e seis anos. Sr. Vito já não apresentava um aspecto tão saudável. Os netos preocupados com sua saúde decidiram  presenteá-lo com o que tanto ele desejava. 

Apesar da dificuldade de locomoção, providenciaram um transporte adequado.  Sr. Vito viajou de Barra do Piraí no Rio de Janeiro, até as margens da rodovia Dutra na grande São Paulo. Depois de viajar por quase 400 km, estava feliz  por chegar ao local onde trabalhou por quase toda sua vida. 

  Ao adentrarem o terreno onde havia a fábrica, Senhor Vito sentia um forte aperto no peito. Tudo ali estava abandonado. Onde antes havia progresso, pujança, emprego e alegria, agora era somente ruínas. Os netos ficavam admirados em verem o avô andar entre os destroços. Caminhava com muita desenvoltura, como se conhecesse cada centímetro do terreno. Parou em frente ao maior símbolo da antiga empresa, a chaminé de aproximadamente cinquenta metros de altura, que teimosamente ousava em se manter de pé. Era tão grande e tão larga que em toda a sua volta no seu interior tinha uma escada, onde por milhares de  vezes, em tantos anos, Senhor Vito subiu para limpar e acompanhar a movimentação dos funcionários, que embarcavam e desembarcavam as mercadorias.

Ao olhar para aquele enorme monumento, Senhor Vito sentiu-se revitalizado. Olhando para os netos disse-lhes com voz embargada:

- Ajudem-me a subir! 

- Vô, não è possível. A chaminé está desativada há muito tempo. E o senhor  não tem a menor condição de subir tantos degraus.

 Senhor Vito pôs-se à frente e lentamente começou a subi-los. A cada degrau sentia-se mais forte, e assim foi subindo um a um. 

Os netos ficaram impressionados com a resistência e capacidade do avô. Senhor Vito sentia-se mais jovem a cada passo e assim depois de superar mais de cinco andares, chegou ao terraço, de onde tinha uma vista privilegiada de toda a fábrica. Encostou-se no parapeito e como se fosse um presente do destino, emocionado, passou a observar a movimentação na  fábrica, homens  trabalhando a todo o vapor. Os empregados corriam de um lado para o outro. Ele ficava do alto controlando toda a movimentação. Olhou para si próprio e viu-se jovem com 26 anos. Surpreso abraçava os netos, cantava e gritava de alegria. Circulava pela chaminé, quando notou uma moça aproximar-se. Lá de cima olhou e viu sua futura esposa acenar, mandando-lhe beijos.  Júlia era linda, uma bela jovem que todos os dias vinha vê-lo trabalhar na chaminé.

Incrédulos com o que estavam presenciando, os netos beliscavam-se para confirmar o que viam. O avô transformara-se em um jovem, bonito, corpo atlético, cabelos negros, esbanjando saúde e comandando um verdadeiro batalhão de funcionários. Viam também a fábrica, que tinha aspecto secular, em pleno funcionamento.  Admiravam a beleza da avó quando moça, chegaram até a brincar com o ele:

- Puxa vô, o senhor não dormiu no ponto ! A vovó era linda, muito faceira!

Ao cair da tarde, depois desta grande aventura, decidiram retornar. Afinal uma boa estrada os esperavam. Senhor Vito deixava o local com o coração partido. Não gostaria de sair dali. A cada degrau que descia, sentia-se mais cansado, e envelhecia. Ao chegar no térreo estava ele com seus noventa e seis anos de idade. Feliz por ter reencontrado suas lembranças, mas triste por estar diante das ruínas e acreditar que não havia cumprido sua missão. Os netos apesar de surpresos com a visão que tiveram, não ousaram contar a ninguém experiência que viveram.

Mais um ano se passou e mais uma vez Senhor Vito pediu o seu presente favorito. Desta vez não lhe foi negado o pedido. O velho os abraçou e emocionado dizia:

- Meus queridos netos, eu preciso voltar naquele lugar, sinto que ainda preciso realizar minha missão.

Os rapazes também estavam ansiosos para reviver algo tão fantástico. E novamente voltaram. Senhor Vito sentia mais dificuldades, porém ao avistar a chaminé encheu-se de energia. Caminhou a  passos largos. Os jovens tentavam acompanhá-lo, mas sentiam-se cansados. Senhor Vito começou a subir novamente os degraus sentindo-se  rejuvenescer.

Chegou ao topo cheio de vida, como se o tempo não tivesse passado, tudo estava como há 70 anos atrás e  neste momento tudo funcionava como antes. A fábrica trabalhava a todo vapor. Se não fossem seus netos ao seu lado, acreditaria que estava realmente vivendo a realidade e não um sonho. Mas seu retorno a este lugar tinha um objetivo. Estava decidido. Não mais desceria da chaminé, sem antes tentar evitar sua destruição. 

Os netos tentaram convencê-lo, que era necessário descer, mas ele estava irredutível. Somente sairia se conseguisse falar com o diretor da fábrica. Pediu que seus netos descessem e entregassem em mãos  uma carta ao diretor.

Ao recebê-la, considerando que seu funcionário havia enlouquecido, o diretor ordenou fechar a chaminé e negava-se em  aproximar-se da mesma, muito menos subir para atender a um pedido de um funcionário que parecia estar emocionalmente desequilibrado. Sr. Vito gritava lá do alto.

- Não arredo o pé daqui. Não enquanto não me ouvirem e me deixarem provar que é possível evitar a destruição desta fábrica.   

E ali passou alguns dias chamando a atenção dos clientes, fornecedores e funcionários, que pela primeira vez em muitos anos paralisaram a produção e pediam que ele descesse.  Sr Vito não atendeu ao pedido dos amigos de trabalho, nem tão pouco de Júlia, sua futura esposa. Após três dias o diretor decidiu atendê-lo, pois a sua atitude estava trazendo prejuízos e constrangimentos.

Ao subir na chaminé, o diretor, acompanhado de assessores, observava a fábrica. Senhor Vito trazia uma mala cheia de recortes de jornais datados  anos à frente, com fotografias e noticiários do local, apresentando as ruínas que restaram. Mostrou-lhe a foto e disse-lhe:

- Senhor, faz-se necessário mudar os rumos de sua administração, caso contrário será  o fim da empresa. Muitos ficarão sem emprego; muitas famílias dependem desta fábrica. A cidade é totalmente dependente dos impostos, no futuro a produção será  indispensável e se for bem administrada, poderá  tornar-se uma grande potência, mas se assim continuar a administrar, este será  seu futuro, terminará  em ruínas, como demonstram estes documentos.

 A princípio o diretor e sua equipe não deram atenção ao que Senhor Vito dizia, porém ficaram surpresos com tantos fatos relatados e fotografados em jornais que nunca ouviram falar. De posse da maleta começaram a descer as escadas com a promessa que iriam se reunir para discutir a situação. Logo perceberam que as fotografias e os jornais estavam se  deteriorando. 

Ao chegar no térreo havia somente pó na maleta. Neste momento, diante do ocorrido, decidiram discutir seriamente o fato e tomaram novas decisões. Contrataram novos profissionais, abriu capital e transformaram a empresa familiar em uma grande empresa privada, nomeando um novo presidente.    Sua eficácia tornou-a numa das maiores indústrias do setor, com filias em todo mundo, mas hoje pela  segunda vez em mais de meio século paralisaram a produção, reuniram todos os funcionários no pátio, acompanhado de familiares, repórteres, amigos, clientes e fornecedores, todos emocionados comemoravam os 97 anos do Sr. Vito, com um busto de bronze, o qual homenageavam o presidente que mais atuou em todos estes anos, diziam que era um homem à  frente do seu tempo, e que acompanhado dos netos, estava orgulhoso de ser reconhecido, e também aplaudiam a coragem de um homem que parecia sempre prever o que iria acontecer, transformando perspectivas em objetivos e metas realizadas.  

 


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