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domingo, 16 de novembro de 2014

A COOPERATIVA


Iniciava-se mais um período turbulento na economia. Era inevitável o corte de funcionários. De certa forma a globalização afeta nosso país, que sofre algumas conseqüências do que acontece em outras nações.

Henrique um executivo poderoso de uma grande multinacional, apesar de 28 anos de idade, com suas estratégias chegou ao cargo de diretor, era irreverente, calculista, não media esforços para conseguir o que queria. Era formado em uma universidade nos Estados Unidos e cheio de ideias do primeiro mundo muito inovadoras.

Para Henrique não havia limites nem obstáculos. Aos olhos de alguns empresários conservadores, suas ideias eram arrojadas e ousadas demais, por isso não conseguiu apoio necessário para implantá-las. Eles temiam que os planos de Henrique prejudicassem o controle e a administração da empresa. Após várias divergências com a diretoria fora demitido, no entanto, por sua qualificação, já havia recebido outras propostas de trabalho, porém, não as aceitou, considerou que merecia tirar férias. Após alguns dias de descanso fora do país, retornou ao Brasil e foi passar um período na casa de sua mãe em São Nicolau, interior do estado, a dez quilômetros da Rodovia principal. Possuía aproximadamente vinte mil habitantes. A situação econômica na cidade era caótica. A prefeitura estava falida. O número de desempregados atingia 60% da população. Os jovens não tinham perspectivas de trabalho, poucos eram os trabalhadores que possuíam registro em carteira, e muitos eram diaristas para o corte da cana-de-açúcar que lutavam todas as manhãs para serem escolhidos para um trabalho quase escravo. O pouco dinheiro que recebiam gastavam nos armazéns controlados pelos próprios fazendeiros.

Henrique era experiente em liderar e organizar equipes. Sentiu naquele momento que poderia ser sua grande oportunidade de explorar seus conhecimentos e ideias que os empresários nunca permitiram que ele realizasse. Aquela situação desumana à sua frente, foi a motivação que precisava para por em prática o que havia aprendido. Luci, sua mãe preocupou-se em vê-lo tão entusiasmado, pois a vida em São Nicolau era muito diferente da cidade grande. Os fazendeiros dominavam aquela região a três gerações, mandavam prender e matar todos que cruzassem seus caminhos.
Henrique acreditava que era exagero por parte de sua mãe, afinal viviam numa democracia.

Empolgado começou a pesquisar itens necessários para expor seu projeto. Era audacioso e em pouco tempo descobriu todos os pontos fortes e fracos á serem superados. Integrou-se com algumas pessoas de certa influência, e com o auxílio do padre da cidade que aprovou suas ideias, iniciou algumas reuniões com a comunidade local. Precisava ver de perto todos os métodos de trabalho.
Todas as manhãs a praça central ficava repleta de homens e mulheres disputando um espaço com braços erguidos pedindo por uma vaga naquele dia. A luta pela sobrevivência era cruel, todos que ali estavam tinham famílias para sustentar. O cenário era humilhante. Entre uma multidão, apenas quatrocentas pessoas eram escolhidas diariamente. Quem os selecionavam eram os próprios caminhoneiros, que paravam os caminhões à frente e chamavam por mais duzentas pessoas, oferecendo pagar somente a metade do preço pelo mesmo trabalho. Sem muitas alternativas, muitos corriam atrás do caminhão e subiam desesperadamente na carroceria e logo as vagas eram preenchidas.

Henrique acordava cedo e se infiltrava no meio dos trabalhadores para o corte da cana, trabalhou alguns dias, era sempre designado ao trabalho, pois era forte e robusto. Precisava conhecer todas as dificuldades que aquelas pessoas sofriam, além de criar empatia e conquistar a confiança dos mesmos.
Inconformado com a situação daquelas pessoas deu início a seus planos. Teve o apoio do prefeito e criou uma cooperativa com os desempregados da cidade. Cadastrou todos que tinham interesse. Alugou um galpão na periferia da cidade com mais de trinta mil metros quadrados, e começaram a reformá-lo com o trabalho dos próprios associados.

Anunciou em vários jornais, inclusive os da capital, solicitando doações de máquinas que estivessem ociosas, fora de uso, ou mesmo quebradas, e tudo que pudesse ser recuperado para a cooperativa de São Nicolau. O retorno foi inesperado, centenas de pessoas colaboraram e colocaram à disposição várias máquinas com diversas finalidades de uso. Desde fresadoras, injetoras a ar, computadores, e muitas máquinas de tecer.

Receberam mais de duas mil peças. O salão paroquial foi cedido pelo Padre Zezinho, e muitas delas tiveram que ser entregues nas casas dos moradores interessados no projeto de Henrique. Conseguiu uma parceria com uma escola de São Paulo que enviou instrutores para um curso técnico sobre o manuseio das máquinas. A cooperativa crescia a cada dia.

Após várias reuniões com os associados descobriu o potencial e a aptidão de cada um e aplicou nos trabalhos da cooperativa, de maneira que o aproveitamento e a produção eram satisfatórios. Henrique conhecia um artesão do interior da Bahia, e convidou-o para iniciar aulas práticas de artesanato em argila e cerâmica, onde muitos tiveram a oportunidade de descobrirem que eram talentosos, e logo algumas famílias estavam criando objetos de boa qualidade.

Apresentou a prefeitura um projeto para ampliar o turismo na cidade. Sua ideia foi aprovada, e recebeu dela uma área com alguns alqueires chamada de Boa Esperança. Com o auxílio do artesão e de muitos cooperativos, construíram em cada lote deste local, miniaturas de aproximadamente um metro e meio de altura de monumentos históricos, como o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, o Palácio do Planalto, a Torre Eifel, a Estátua da Liberdade, a Casa Branca, as Cascatas do Iguaçu, as Pirâmides do Egito, entre outras. Boa Esperança passou a ser visitada por todos que chegavam à cidade. Todos os artesanatos criados pelos integrantes da cooperativa, inclusive suvenir das mesmas obras, passaram a ser vendidos aos visitantes.

Na parte sul de São Nicolau havia uma nascente que desaguava num afluente de um rio local. Seu plano seria formar um lago que circundasse toda a cidade, transformando-a numa ilha de quase dez mil quilômetros quadrados, com largura e profundidade suficientes para proporcionar passeios de barcos por toda a cidade, para suas margens contrataria jardineiros que fariam trabalho artesanal com as árvores contornadas em diversos formatos, transformando a paisagem num verdadeiro jardim botânico. Sua ideia mais uma vez foi aprovada, e logo houve patrocinadores e investidores para o projeto.

A cooperativa cadastrava novos associados, e ensinava-lhes outras profissões. Henrique tinha como meta transformar a cidade em têxtil, pois receberam mais de oitocentas máquinas para a tecelagem. Acreditava que não seria difícil convencer as mulheres a aprender o ofício. Teve o apoio de um fazendeiro que investiu na compra da matéria-prima, e assim muitas jovens e senhoras envolveram-se neste trabalho e logo estavam produzindo diversas fazendas, tecidos de boa qualidade e malhas que comercializavam em São Paulo e cidades Serranas.

Através de alguns contatos com Henrique, e incentivo das autoridades locais, algumas indústrias instalaram filiais em São Nicolau. Quase todos os trabalhadores estavam registrados na cooperativa. Qualquer empresa, fazendeiro, lojista e até mesmo a Prefeitura que necessitassem de serviços como pinturas, reformas e construção tinham que contratar através da mesma. O corte da cana-de-açúcar somente era liberado com salário e condições dignas, transporte adequado, e com marmitas quentes oferecidas pelos fazendeiros. A sociedade criou micro-empresas que estavam ligadas a todas as máquinas doadas. São Nicolau já era conhecida como a cidade do novo turismo e já tinha aspectos totalmente diferentes de anteriormente.

Na entrada da cidade foi construído um portal, que recepcionava os visitantes e turistas com segurança dia e noite. Para entrar ou sair de São Nicolau todos tinham que passar por uma ponte construída por cima do grande lago onde havia os passeios de barco e canoas, assim como as de Veneza na Itália, que eram manobradas por barqueiros uniformizados com o símbolo da cooperativa. A cidade oferecia pousadas e hotéis reestruturados, além dos diversos pontos turísticos criados para agradar pessoas que vinham desfrutar do lazer. Havia ainda a gruta de São Nicolau que jorrava água das pedras, feita artificialmente, mas era tão perfeita que ninguém notava. E em pouco tempo já se faziam romarias, pois alguns milagres foram creditados a ele, e ninguém saia sem levar o santinho em barro feito pelos moradores da cidade. As opções de compras no centro eram algo que atraiam turistas de todas as partes. Desenvolveu-se um esquema de iluminação colorida na cidade onde a noite era possível ver à distância o contorno de símbolos,como coração, estrela, barco, e o nome da cidade em destaque.

Foi necessário também que Henrique desenvolvesse um projeto para chegada de centenas de ônibus de excursões. Construíram um amplo estacionamento onde cada ônibus recebia uma faixa colorida e seus ocupantes um boné da mesma cor, com o adesivo da cooperativa, isso para evitar os transtornos causados para os visitantes na hora da chegada ou da saída, assim era possível identificar os participantes da mesma excursão. Uma comissão divulgava a cidade através de folhetos e cartazes em outras regiões.
Henrique não media esforços para conseguir manter a cidade em alta temporada o ano todo, pois não dependiam do clima e nem das ocasiões comemorativas. Através de seus conhecimentos, Henrique conseguiu com uma grande emissora de televisão, fazer reportagens enaltecendo o trabalho da comunidade em prol da cidade. A cooperativa criou micro empresas têxteis e controlava toda a produção e os canais de vendas. Desta forma os proprietários tinham tempo disponível para atender aos visitantes da cidade, pois todos que por ali passavam acabavam adquirindo algo. O artesanato era um ponto favorável para as pessoas de pouca formação, pois todos eram treinados e conseguiam produzir verdadeiras obras de arte. Toda a produção era comprada pela cooperativa e depois colocada à venda para atender aos turistas. Inclusive quadros pintados a mão por novos talentos da cidade que não se preocupavam com nada, somente em pintar, pois a cooperativa comprava tudo que fosse criado, e para incentivá-los contratava-os para divulgarem suas obras e vendê-las. Havia ainda outro serviço oferecido, eram passeios de charretes pela cidade e miniaturas de carrinhos empurrados por senhores aposentados, levando crianças de um lado para outro em torno da praça.

A cooperativa comprou todos os terrenos disponíveis no centro da cidade e construiu prédios de quatro andares, e com doze apartamentos cada, adensando o centro. Henrique acreditava que não era vantajoso investir nos bairros, pois para isso haveria a necessidade de estruturar com água, luz, asfalto, esgoto, além de dispersar as pessoas do centro da cidade, pois queria manter o ar interiorano aos turistas. Assim quase todos os moradores de São Nicolau eram trabalhadores da cooperativa, que enriquecia a olhos vistos e também eram controlados por Henrique que era respeitado e tinha credibilidade de todos.

Tornara-se poderoso, era o presidente da cooperativa, participava das empresas como diretor, conselheiro, acionista e de outras era proprietário. A economia local estava em suas mãos. Todos tinham que pagar as suas mensalidades em dia para continuarem a desfrutar das benesses da cooperativa. A riqueza chegou para todos. O índice de mortalidade chegou a zero nas crianças recém-nascidas. Havia escolaridade para as crianças e jovens da cidade. Uma multidão visitava São Nicolau todos os finais de semana trazendo muito dinheiro e benefícios para a população, que eram todos funcionários e trabalhavam para um só órgão.
A cooperativa era quem se preocupava com a estratégia de produção e distribuição, contratando e fechando grandes negócios para o micro empresário. Os fazendeiros não conseguiam vender suas produções, pois a cooperativa tinha de certo modo monopolizado a compra do cultivo, transformando-se numa forte atravessadora entre o produtor rural e os pontos de vendas, elevando a receita bruta da cooperativa e se tornando a principal compradora de toda região, ditando preços e condições de pagamento. A contratação de funcionários para os trabalhos na lavoura passou a ficar dispendiosa. Incomodados com aquele monopólio decidiram reagir. A mídia e os fazendeiros começaram a demonstrar muita preocupação e promoveram uma reunião secreta, onde estavam presentes latifundiários de outras regiões do estado, preocupados com o sucesso alcançado pela Cooperativa de São Nicolau, que ganhava simpatizantes de todo o Brasil. Não era possível concorrer com tamanha estrutura, e se alguma providência não fosse tomada logo, estariam presos ás condições das cooperativas, sob o comando de um só líder.

Precisavam desarticular esse movimento e a única maneira seria expor Henrique perante a população fazendo com que ele perdesse a credibilidade e a confiança dos funcionários e associados da cooperativa, pois eles não enxergavam que foram dominados e estavam sendo mantidos sob um controle regido, e que os impediam de administrar seus próprios negócios, com o agravante de não poderem conhecer seus principais fornecedores e clientes, gerando uma dependência extraordinária a um homem chamado Henrique. Imediatamente alguns homens foram infiltrados na cidade para desencadear um clima de insegurança, mostrando aos trabalhadores os riscos que eles estavam correndo. Houve reuniões com lideres políticos e foram consideradas as preocupações onde criariam um pretexto para divulgar o malefício que uma estrutura assim podia trazer para toda a sociedade, pois se nada fosse feito, em pouco tempo poderiam ter outras cidades sendo controladas da mesma forma e politicamente isso não era conveniente.

Os rumores na câmara dos deputados e na imprensa logo chegou aos ouvidos do governo, onde percebeu que não tinha coordenação política na economia da cidade, pois o prefeito e os vereadores foram indicados e eleitos pela própria cooperativa. Isso deu margens à críticas do ministro da justiça que estava aliado aos ruralistas, e quando questionado por um repórter sobre o que estava acontecendo em São Nicolau, não perdeu a oportunidade de criticar o regime ali implantado por um homem com ideias duvidosas, pois tinha alienado toda a população.

A polícia e os funcionários públicos federais eram descriminados de maneira que não conseguiam trabalhar na cidade, tendo que se sujeitar a escolha por parte de Henrique, que também tinha ilhado a cidade, não permitindo o livre direito de ir e vir das pessoas, pois todos tinham que pagar pedágio se quisessem entrar ou sair da cidade. E ainda havia aproveitado brechas nas leis que regiam as cooperativas e vinham se apropriando da isenção de impostos revertendo o lucro para interesses ainda não apurados. Os governantes não se calariam enquanto não conseguissem mostrar a população brasileira os malefícios de uma política implantada por um homem considerado desajustado, como Henrique. Um repórter questionava o ministro como que aquele município tão miserável, em poucos anos tornou-se uma cidade com uma das melhores condições de vida, onde todos tinham emprego, casa própria financiada pela cooperativa, 100% das crianças e jovens tinham escola. Onde estariam os malefícios? E qual seria esse regime que preocupava as autoridades?

O ministro ruborizado encerrou a entrevista respondendo que era o comunismo. Naquele momento todos se entreolharam questionando-se sobre o regime comunista. A confusão estava formada, houve muitas discussões sobre o assunto e o sistema da cooperativa. Naquela semana o governo com uma ação sem precedentes, decretou uma medida provisória cancelando por tempo indeterminado as leis que regiam as cooperativas de funcionários, limitando-os a exercer funções administrativas, impedindo-os de realizarem qualquer tipo de negociações. O exército invadiu a cidade criando barreiras e impedindo qualquer pessoa entrar. Ninguém poderia sair com qualquer produto fabricado pela cooperativa. Os direitos políticos e sociais de Henrique foram suspensos até que fossem apuradas se havia irregularidades cometidas por ele. Aos olhos do governo o mesmo teria usado de subterfúgios para desenvolver um regime repudiado pela constituição brasileira. Os soldados diziam que eles foram vítimas de um homem ganancioso, que aproveitou da inocência da população e em pouco tempo tornou-se um homem milionário.

Em pouco tempo os turistas deixaram de visitar a cidade, que começou a passar por dificuldades. Já não se comercializavam mais as roupas e artesanatos. As empresas fecharam suas filais e todas as encomendas que tinham origem de São Nicolau foram canceladas. O patrimônio que levou três anos para ser construído, em menos de três meses foi completamente aniquilado. O líder do exército convocou uma reunião na praça central com todos os micro-empresários, funcionários e a população, onde esclareceu o motivo pelo qual o governo havia assumido a direção da cidade, pois a política implantada por Henrique fez com que a população ficasse sob a possessão de um único homem, que interessado em dominar, criou um sistema que impediu a livre negociação, entre os comerciantes e os produtores, e propositalmente assumiu esse dever para não deixar que os moradores tivessem dependência própria.
A situação era crítica, as dívidas dos moradores eram enormes, alguns tinham investimentos fora da cidade, outros não recebiam há mais de três meses e já começavam a passar dificuldades. Os bens da cooperativa estavam bloqueados por ordem da justiça. A crise estava alarmante e sobre uma pressão do estado, do exército e dos fazendeiros, população revoltada com Henrique deixou de apoiá-lo. Reuniram-se em frente à sede da cooperativa e iniciaram um quebra-quebra, com infiltração de desordeiros e homens contratados pelos fazendeiros passando-se por trabalhadores totalmente desequilibrados.

Agrediram o jovem Henrique expulsando-o da cidade chamando-o de comunista e aproveitador. Diziam que ele havia enriquecido à custa da população carente. Henrique tentou dialogar. Percebeu que a população estava servindo de massa de manobra por parte dos governos e dos fazendeiros. Sentiu que corria perigo de vida e que não seria mais possível controlar aquela situação. Abalado saiu da cidade escoltado por policiais e soldados enviados pelo governo. Foi abrigado atrás de escudos e levado para outra cidade onde seu paradeiro é desconhecido.

São Nicolau passa agora por muitas dificuldades, uma grande empresa têxtil de São Paulo aproveitando a crise resolveu comprar todos os ativos das micro-empresas têxteis, principalmente as máquinas, fechando todas as fábricas instaladas na cidade. A maioria dos moradores de melhor situação financeira deixou a cidade utilizando o pequeno capital para investir em novos negócios, contribuindo para aumentar o desemprego na cidade. Empregados com carteira assinada eram raros, e a maioria voltou a disputar uma vaga nas mesmas condições de antigamente para o corte da cana-de-açúcar.

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