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domingo, 16 de novembro de 2014

LEMBRANÇAS







- Oh de casa!... Tem alguém aí?
“Será que tem cachorro aqui? Eu tenho tanto medo. Desde que o meu pequeno Maurício foi mordido, fiquei assim, medrosa...” 
- Tem alguém aí? 
“Estranho! A porta está aberta. Meu Deus... Preciso de um lugar para passar esta noite”. 
- Oh de casa! Tem alguém aí?
- Sim, pode entrar!
- Boa Noite! Com licença, preciso de ajuda. Um acidente na estrada me obrigou a desviar do caminho. Entrei por uma rua alternativa, estreita e com muitas poças d’água. Meu carro derrapou e atolou na lama... Depois de muito esforço saí do carro e caminhei sem rumo à procura de ajuda, foi quando vi sua casa... É a única do caminho. Chamou minha atenção porque vi as janelas entreabertas e observei que havia uma fresta de luz. 
- Eu sei, estava te esperando!
- Me esperando? Como? Estou perdida neste lugar. 
- Eu sei... Minha casa é humilde, mas está sempre pronta para acolher as pessoas que passam por aqui. Eu fiz um chá de camomila e sei que você gosta.
- Como sabe? 
- É meu chá favorito...
- É o meu também. 
- Procuro estar sempre preparada para receber alguém... Sinto-me muito sozinha, gosto quando tenho companhia... Quando não a tenho preparo o meu chá preferido e pego meu álbum de fotografias... Mas o que te trouxe por esta região?
- Na verdade eu não sei. Estou deprimida. Por isso resolvi sair um pouco. Peguei meu carro e quando percebi já não sabia mais onde estava... E agora estou aqui tomando um chá... Ando meio desanimada, sem saber o que fazer da minha vida.
- Você ainda é jovem, inteligente, é muito bonita... Não se sente feliz?
- Não senhora... Minha vida é um verdadeiro desperdício... Mas acho que não vale à pena falar disso agora.
- Por que não?
- Porque não lembro muito do meu passado... Alias, procuro não lembrar...
- Não podemos renegar o passado... Ele edifica o futuro... E mesmo que nos pareça ruim é de muita valia. Adquirimos experiência, aprendemos a superar os desafios da vida... Está vendo aquela janela, aproxime-se dela, abra-a, veja a bela paisagem. Eu diria que ela é especial... Com certeza lembrará do seu passado e terá uma nova visão.
- Vejo uma linda noite lá fora quente e iluminada, é noite de lua cheia!
- Observe... Contemple a natureza... A noite está clara... O que vê?
- Vejo o convento... No interior de São Paulo!... A freira está na porta á minha espera. Meus pais vão á frente discutindo, como sempre. Éramos pobres, passávamos muitas dificuldades. Eu, apesar de muito pequena, entendi que aquele seria meu novo lar... Sempre ouvia quando meus pais diziam que não poderiam ficar comigo... E levaram-me para aquele lugar, um casarão, nunca havia visto nada tão grande, parecia um castelo. A freira nos atendeu e me levou para dentro... Que tristeza... Meus pais tomam distância... Minha mãe tentava olhar para trás, ameaça uma, duas vezes. Meu pai puxando-a pelo braço tentava impedi-la de me olhar, mas antes que dobrassem o quarteirão, ela conseguiu se desvencilhar dele e levando as duas mãos á boca manda-me um beijo, mas continua sendo arrastada...
- Seus pais a amam... Só que precisavam de um tempo para se recuperar. Estavam desempregados e sem filhos teriam mais facilidade de arranjar um trabalho. Eles tinham planos de buscá-la logo que fosse possível. Apesar de tudo e da saudade que sentia deles, você viveu dias melhores... Olhe para a janela e conte-me o que vê...
- Vivíamos em 1926. Anos difíceis. Tive que trabalhar... Segundo a freira, eu precisava ajudar nas tarefas. Passei a lavar, limpar e servi-las. Não estudava, no convento não havia crianças. Elas não me deixavam folhear as revistas que esporadicamente eu via circular no convento. Nem me deixavam participar das conversas “sérias”. Sempre pediam para que eu fosse me deitar. O tempo passou rapidamente e meus pais nunca mais voltaram... Agora já adolescente era mais uma funcionária sem salário, do que uma interna. Tinha um lugar para morar, no entanto, não tinha ninguém para conversar, nem tão pouco para me ouvir... Nesta época algo muito importante aconteceu... O convento foi requisitado pelas autoridades para servir de hospital de campanha aos feridos da revolução de 1932. Chegavam ao convento muitos feridos, homens feios, bonitos, gordos, magros, não importava... Eles imploraram por ajuda e eu estava lá para ajudá-los, apesar do sofrimento daqueles homens, sentia-me útil... Aprendi a ser enfermeira. Nunca tinha visto um homem nu... Que coisas estranhas eles carregavam entre as pernas! 

Eu acreditava que doía... Pensei que eram ferimentos das batalhas, ficavam com aqueles caroços pendurados... Parecia um saco!... Eu achava estranho... Todos tinham aquilo no mesmo lugar? Meu Deus que coisa feia...! Alguns daqueles homens não suportaram os ferimentos e partiram. Aí descobri o que era a morte. Chorei. Chorei muito... Fui consolada pela madre superiora dizendo que a vida era assim, um dia todos iríamos morrer e descansar. Aí então me desesperei de vez... Não queria mais descansar... Trabalhava dia e noite somente para não pensar que podia morrer também. Por que a guerra? Por que a morte?
- Nós nascemos para sermos felizes. Deus nos colocou a disposição a água, as matas, as montanhas, o vento, o sol... Deu-nos a vida, alimento, mas nem sempre valorizamos e queremos mais, não observamos com seriedade o que Deus nos deu e o que foi criado para nos dar felicidade passa a ser o motivo das guerras, onde um atira no outro para roubar um pedaço de terra, um pouco d’água, um pouco de comida, mas tudo isso pertence a todos... Quem sabe um dia, os homens poderão compreender que tudo isto está a nossa disposição, sem precisar fazer guerra... 
- Durante os meses seguintes os soldados foram se recuperando e naquela noite... Não... Não quero mais ver nada...
- Continue você é forte. Veja a experiência que adquiriu. Tanto sofrimento veio fortalecê-la. Vamos continue...
- Um daqueles soldados que ainda estava na enfermaria, aproveitou o momento em que eu estava limpando o quarto, levantou-se de sua cama empurrou-me contra a parede e num ato desesperado levantou a minha saia... Eu fiquei aflita, não entendi o que ele queria, tive medo e não reagi. Aquela coisa estranha que traziam entre suas pernas estava grande... Parecia-me diferente, enquanto tentava entender o que ele queria, acompanhei seus movimentos e senti uma dor muito forte... Ele me machucou. Empurrei-o, e ele assustado com meus gritos, fugiu. Chorei a noite toda. Eu cuidei daquele homem! Ele não tinha o direito de me machucar. Ao passar dos meses minhas regras tão recentes, não vieram mais, na verdade ainda não tinha entendido porque tudo aquilo acontecia todos os meses, minha barriga crescia rapidamente. Contei para a freira o que estava acontecendo e ela me explicou tudo com detalhes, e com tom de acusação disse que eu iria dar a vida a um novo ser. Meu Deus quantas descobertas, aprendi o que era a morte noutro dia, de repente descubro que posso dar a vida! Fiquei orgulhosa de mim...
- Oh! Minha querida. Agradeça a Deus por não ter carregado este trauma. Apesar de tudo você estava feliz por poder gerar uma vida. Imagine as fraquezas e carências daquele homem? Você tratava deles com carinho, com afeto, cuidava das suas partes íntimas que considerava feridas. Vá até a janela... Continue e veja quanta alegria...
- Já era tarde quando senti as dores do parto. As freiras trabalharam muito e felizmente nasceu meu menino, porém nasceu com uma deficiência nas pernas, eram tortas e pouco desenvolvidas. As freiras tentaram de tudo, massagens, chás caseiros, compressas de ervas, mas ele não reagia. Não pude mais continuar morando no convento e mudei-me para uma casinha no subúrbio que pertencia ao convento, onde recebia mensalmente uma pequena ajuda das freiras para que eu pudesse cuidar de meu menino, precisei arranjar um emprego como auxiliar de enfermagem no hospital para complementar a renda mensal e pagar Dona Nezinha, uma vizinha, para tomar conta de Maurício. Ele demorou a andar e quando começou, o fazia com movimentos bruscos. Ainda era pequenino quando numa tarde ao tentar correr um cachorro avançou e mordeu-lhe a perna. Maurício gritava assustado e logo conseguimos socorrê-lo. Depois do susto começamos mais um longo período de tratamento. Malditos vizinhos que tem cachorros e não cuidam deles, como podem deixá-los soltos por aí? Coitadinho do meu menino! Mas felizmente isso não o perturbou. Maurício superou mais este incidente... Sempre foi muito inteligente, aprendeu a ler e escrever com facilidade. Ia muito bem nos estudos. Para minha surpresa Maurício dizia que queria ser atleta, gostava de ver as revistas de esportes e sentia-se motivado cada vez mais. Ele queria correr não falava de outra coisa. Eu não queria desanimá-lo, mas como meu Deus? Com aquelas perninhas atrofiadas e tortas, como poderia correr? Anos passaram e Maurício não desistia desta ideia. Queria correr. Começou a treinar na escola. Cortava-me o coração ver seu esforço nos treinos que era em vão. Sabia que jamais conseguiria chegar a algum lugar. Nem podia incentivá-lo e meu coração de mãe sofria muito.
- Minha querida venha cá. Deus lhe deu uma vida para que você pudesse amar. Maurício é tão abençoado que apesar deste problema tinha forças para lutar e queria mostrar para você que era capaz. Quantas mulheres gostariam de poder gerar uma vida e não podem? Deus lhe deu esta dádiva! Vamos continue...
- Borges! Este foi o homem com quem dividi alguns momentos bons, poucos na verdade, embora tivesse me dado conforto. O conheci no hospital aos 27 anos. Eu ainda jovem, bonita, atraente, porém triste. Mas isto não importava. Borges era muito rico, mas estava doente e era avarento. Não queria pagar uma enfermeira para cuidar dele. Então me ofereceu uma casa e uma vida em comum, desde que aceitasse algumas condições. Eu teria uma casa, conforto, roupas, tudo o que precisasse, mas teria que cuidar dele de dia e de noite, empregaria toda a minha experiência como enfermeira... Maurício ficava na casa de Dona Nezinha enquanto eu fazia companhia a Borges. Eu o namorava e recebia algum dinheiro pelo trabalho dispensado, era o suficiente para cuidar do meu pequeno Maurício. Na escola, mesmo com suas limitações, continuava correndo já com alguma desenvoltura. Com o passar do tempo meu compromisso se firmou. Casei-me com separação total de bens. Borges não aceitava Maurício. Não queria nenhum envolvimento com o meu filho, ainda mais com seus problemas de saúde que se agravaram. Submeti-me a tais condições e contratei definitivamente D. Nezinha para ficar com Maurício, pois precisávamos vir para São Paulo para um tratamento mais adequado a Borges.
- Na Verdade você não queria abandoná-lo. Você sempre acreditou que iria buscá-lo. Quis proporcionar-lhe um futuro mais seguro. Não se culpe. Dona Nezinha o queira muito bem e o tratava como filho!
- É verdade, eu achei que me casando poderia lhe dar uma educação digna, diferente da que eu tive. Mas infelizmente tudo se repetiu. Abandonei meu filho. 
Apesar de ter tido a sorte de encontrar uma mãe para ele. D. Nezinha amava-o acima de tudo e foi para ele a mãe que eu não consegui ser. Formei-me como enfermeira e passei a tratar de Borges com mais afinco. Ele sofria com problemas renais e não quis se internar para um tratamento melhor. Apesar de tudo a companhia dele me dava segurança.
- E apesar da saudade que sentia de você, Maurício teve uma boa educação. D. Nezinha deu-lhe carinho e sempre o incentivou a realizar o seu sonho. Isto fez muito bem para Maurício... Veja na janela como ele se sente...
- Chegávamos ao final do ano de 1950. Vejo-me lendo os jornais da época que noticiavam a Corrida de São Silvestre, em destaque a foto de Maurício. Levei um susto quando vi aquela foto. Apressei-me em ler a reportagem que destacava um jovem deficiente, estava emocionada. O meu menino participaria da corrida. Maurício dizia na entrevista que iria correr, pois tinha como meta mostrar para sua mãe que ele suportaria os quilômetros daquela prova e no final subiria ao pódio onde ouviria o hino nacional. Veja senhora, apesar de tudo é para mim que ele corria... Ele sempre soube que eu nunca o esqueci e queria me dar um presente.
- Está vendo, ele não ficou triste com sua atitude. Apesar de muito jovem soube compreendê-la e estava tentando lhe mostrar isto. As fotos dos jornais conseguem mostrar a sua expressão de alegria.
- Fiquei muito orgulhosa do meu menino. Tinha se tornado um homem e todos elogiavam sua força de vontade. Mas no fundo de minha alma eu não acreditava que ele pudesse realizar seu desejo. Nunca acreditei que ele pudesse ouvir o hino nacional tocar em sua homenagem... Para mim seria mais uma frustração. Durante aqueles dias não pude procurá-lo, eu queria tentar demovê-lo daquela idéia. A Senhora acha que agi errado?
- Claro que não, qualquer mãe evitaria tal sofrimento. Além disso, ele poderia cair e se machucar, ou mesmo sentir-se decepcionado. 
- Borges estava muito doente e precisava de meus cuidados. Ele não admitia que mais ninguém cuidasse dele. Mesmo quando precisava de um médico, impedia-me de chamá-lo, pois se recusava a pagar pelos serviços que considerava muito caro.
Com isso nunca pude acompanhar os treinos de Maurício. Na verdade, eu não sabia que ele levara a adiante a ideia de correr. A partir do momento que vi a reportagem saía todas as manhãs só para comprar os jornais e ver se via alguma notícia do meu atleta.
- Seu filho é um exemplo vivo de coragem e luta. Não podia deixar que seus problemas o impedissem de realizar seus desejos. 
- Borges teve uma crise renal e internou-se por aqueles dias. Tentei convencê-lo que meu menino também precisava de mim, mas Borges pedia para que eu não o deixasse sozinho naquele momento. O hospital ficava numa rua próxima a Av. Paulista, dele ouvíamos os fogos da largada da corrida. O trajeto da corrida de São Silvestre já era conhecido, sairiam as 23h:00min retornando por volta das 00h:00min. Foi difícil controlar minha ansiedade. De um lado Borges entre a vida e a morte, do outro meu filho prestes a realizar seu grande sonho. Os locutores acompanhavam os principais corredores e uma emissora de rádio seguia os passos de Maurício. Eu corria do quarto de Borges para a recepção do hospital para ouvir como estava meu filho e voltava rapidamente para ter notícias de Borges que apresentava um quadro delicado. O porteiro do hospital me informava que o rapaz deficiente estava muito mal classificado ocupava a última colocação. Meia-noite. Fogos por todos os lados. Chegam os primeiros atletas. O médico me chamou para noticiar o falecimento de Borges. Durante algum tempo fiquei desorientada e confusa. 
Meu marido acabava de morrer e meu filho corria na avenida ao lado para mostrar que podia viver normalmente. Em meio de minha angustia podia ouvir os fogos em comemoração ao ano novo que chegava. 
Saí correndo do hospital os seguranças pensaram que eu estava em estado de choque. Atravessei a rua já era quase 01 h:00 mim do Ano Novo quando pisei na Avenida Paulista. A festa tomava conta da noite. Enquanto todos se cumprimentavam fui até o pódio e os atletas não estavam mais lá, somente os foliões que comemoravam o Ano Novo. Acreditei que Maurício havia desistido afinal ele não conseguiria chegar. Naquele momento quis morrer. Perdi meu marido e meu filho não apareceu. Eu estava sozinha outra vez.
- Não minha filha. Deus estava colocando em seu caminho uma provação que você teria condições de suportar. Todos nós temos penitências a cumprir neste mundo. Você é muito forte e soube enfrentar mais esta etapa.
- Quando voltava para o hospital ouvi aplausos. Uma multidão abria caminho para um jovem que se aproximava da reta final. Maurício tentando manter-se firme apesar das dificuldades, sorria. Emocionada voltei e tentei aproximar-me, mas a multidão não permitiu. Corriam ao seu lado dando-lhe forças para continuar, pois faltava pouco para cumprir seu objetivo. Caminhei apressada ele já ganhava distância, comecei a ouvir o hino Nacional, quando consegui um pequeno espaço perto do pódio, vi... Lá estava Maurício. Todos em silêncio com as mãos ao peito cantavam o hino, cheguei mais perto e para minha surpresa soube que D. Nezinha havia pedido para os organizadores do evento que tocassem o Hino Nacional quando Maurício chegasse. Ela aproximou-se do pódio e Maurício entregou-lhe o ramalhete de flores erguendo seus braços como se também fosse uma vencedora. Naquele momento entendi que havia perdido uma batalha. Maurício homenageava sua verdadeira mãe, aquela que o criou, que o incentivou e que acreditou que ele era capaz. Todos queriam presenciar aquele momento, onde um jovem deficiente acabava de vencer mais uma etapa de sua vida. Não tive coragem de me aproximar. Saí de mansinho e fui embora. No dia seguinte os jornais não se cansavam de elogiar a força e a coragem do meu Maurício. Viúva e sem filho decidi morar fora da cidade. Comprei uma casinha no campo e me especializei em preparos de chás medicinais. Atendia aos moradores da cidade próxima e fiquei conhecida por curar os problemas de saúde daquelas pessoas. Eu adoro estes chás, eles me transportam para onde posso reviver momentos da minha vida.
- Oh de casa!... Tem alguém aí? Sim... Pode entrar, eu estava te esperando! Tome um chá de camomila que ainda está quentinho, eu sei que você gosta...

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